domingo, 6 de novembro de 2022

PRENDAM SÓFOCLES (baseada numa história real)

 Era 21 de agosto de 1965. Era minha estreia nos palcos do Teatro João Caetano. A peça era “Electra” – um clássico de Sófocles. Eu estava muito contente. Eu fazia parte de um grupo iniciante do mesmo teatro. A noite estava linda, todos os ingressos foram vendidos, tudo estava perfeito, cenário, figurino. Não tínhamos muito dinheiro, mas conseguíamos nos virar.
- A que horas está marcada a peça? – disse um amigo meu que estava lá para me prestigiar.
- Às 21h00. Não vejo a hora, meu coração está preste a pular da minha boca
- Carlinhos, se acalma, tudo vai ficar bem – falou Pedro Afonso, outro amigo, também ator da peça.
- Acho melhor a gente se aprontar – falei decisivo
- Bem vamos – disse Pedro. ... Começo do primeiro ato... Maria Del Costa entrou em cena. De repente se ouviu um barulho, militares entravam no teatro, eram 13 e lá tinha um homem (à paisana) que parecia ser o responsável por eles e ele gritava com voracidade:
- Sou Inspetor Gonçalves, estou aqui para prender Sófocles. Prender esse “comuna”. 
 Todos se admiravam com aquilo, era absurdo, era impossível. O diretor da peça Antônio tentou explicar-se, aos gritos:
- Meu senhor, Sófocles morreu há mais de vinte séculos, sou o diretor da peça, palavra!
- Que palhaçada é essa? Acha que eu tenho cara de quê? Bobo? Palhaço? Arre! Qual o seu nome?
- Antônio Abujamra 
- O senhor deve ser muito amigo dele, para acobertar um subversivo de marca maior... sem blá, blá, blá... Quero saber onde está esse Sófocles. (dirigindo-se aos soldados que o acompanhavam) Vocês passem pente fino no teatro inteiro, procurem esse homem deve estar bem escondido na coxia ou em qualquer outro lugar o teatro está cercado, ninguém há de ousar sair. – disse em tom autoritário
 Eles entraram coxia a fora, Abujamra foi atrás, nós olhávamos pra eles, com uma mistura de medo e coragem, um sentimento tenebroso, e que espero não sentir, mais nunca. Era patético Sófocles estava morto. Uma hora esse inspetor não achando quem queria, mandou os subordinados, pegar e levar-nos, inclusive o diretor, para uma inspeção. Eles nos jogaram numa espécie de van, e ficamos a rodar, estava tudo escuro, eu não via os outros, nem ousávamos dizer uma sequer palavra, o medo nos corrompía.
 Uma hora, ela parou, era o DOPS. Botaram-nos todos numa sala com um coronel, eu acho, ele não se identificou, e perguntava com raiva:
 - Cadê Sófocles? Eu exijo que digam, se não sobra pra vocês! 
 Nós estávamos perplexos de tanto medo, ninguém se ousava a dizer, nem mesmo o Abu. Até que um colega nosso, Antenor Camargo, teve uma gota de coragem e disse-o:
 - Senhor, ele está morto!
- Morto? – ele riu diabolicamente.
- Sim, senhor, morto! – replicou Antenor.
- Você acha que aqui é o que? Que eu sou ignorante? Que eu não sei que ele é um desses escritores da juba comunista? 
- Mas está morto, acredite em nós! – suplicou Camargo
- Acredite em vocês?! Todos estão presos, prendam-no!
 Passamos a noite lá. Passei a noite horrorizado, com muito medo do que nos poderiam acontecer no dia seguinte, não dormir, só pensava em tortura, pensei que eles fossem torturar-me. No dia seguinte os espectadores, mais uma legião de pessoas, estavam lá para nos soltar, entregaram uma edição do livro subversivo em questão, com a biografia do autor. Os militares viram que não tinham como prendê-lo, pois, ele já estava preso só que em outro aspecto e era impossível tirá-lo de lá. Quando nos tiraram da prisão, eu não acreditei no que um soldado nos disse, não falei nada, mas pensei que fosse gozação dele para conosco, e pensei repentinamente, “Eles vão me matar”, “Eles vão me matar”. Só acreditei quando vi meu pai e minha mãe, me agarrei a eles e desabei a chorar, nunca havia chorado daquela maneira, nem sei explicá-la. E o choro vinha atrelado a uma dor, a dor da injustiça. A peça foi proibida por uma subversão identificável. 
 Foi há 55 anos. Hoje, vendo que há pessoas que querem que esse momento grotesco volte, e falam como esse tempo fosse feliz, o mundo fosse respeitador, e houvesse uma segurança reinante. Lembro-me de Cristo e rezo: “Perdoai-lhes, ó pai, eles não sabem o que dizem”
 
Roberto Filho


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