Era 21 de agosto de 1965. Era minha estreia nos palcos do
Teatro João Caetano. A peça era “Electra” – um clássico de Sófocles. Eu
estava muito contente. Eu fazia parte de um grupo iniciante do mesmo
teatro. A noite estava linda, todos os ingressos foram vendidos, tudo
estava perfeito, cenário, figurino. Não tínhamos muito dinheiro, mas
conseguíamos nos virar.- A que horas está marcada a peça? – disse um amigo meu que estava lá para me prestigiar.
- Às 21h00. Não vejo a hora, meu coração está preste a pular da minha boca
- Carlinhos, se acalma, tudo vai ficar bem – falou Pedro Afonso, outro amigo, também ator da peça.
- Acho melhor a gente se aprontar – falei decisivo
-
Bem vamos – disse Pedro. ... Começo do primeiro ato... Maria Del Costa
entrou em cena. De repente se ouviu um barulho, militares entravam no
teatro, eram 13 e lá tinha um homem (à paisana) que parecia ser o
responsável por eles e ele gritava com voracidade:
- Sou Inspetor
Gonçalves, estou aqui para prender Sófocles. Prender esse “comuna”.
Todos se admiravam com aquilo, era absurdo, era impossível. O diretor da
peça Antônio tentou explicar-se, aos gritos:
- Meu senhor, Sófocles morreu há mais de vinte séculos, sou o diretor da peça, palavra!
- Que palhaçada é essa? Acha que eu tenho cara de quê? Bobo? Palhaço? Arre! Qual o seu nome?
-
Antônio Abujamra
- O senhor deve ser muito amigo dele, para acobertar
um subversivo de marca maior... sem blá, blá, blá... Quero saber onde
está esse Sófocles. (dirigindo-se aos soldados que o acompanhavam) Vocês passem pente fino no teatro inteiro, procurem
esse homem deve estar bem escondido na coxia ou em qualquer outro lugar
o teatro está cercado, ninguém há de ousar sair. – disse em tom
autoritário
Eles entraram coxia a fora, Abujamra foi atrás, nós olhávamos pra eles,
com uma mistura de medo e coragem, um sentimento tenebroso, e que espero
não sentir, mais nunca. Era patético Sófocles estava morto. Uma hora
esse inspetor não achando quem queria, mandou os subordinados, pegar e
levar-nos, inclusive o diretor, para uma inspeção. Eles nos jogaram numa
espécie de van, e ficamos a rodar, estava tudo escuro, eu não via os
outros, nem ousávamos dizer uma sequer palavra, o medo nos corrompía.
Uma
hora, ela parou, era o DOPS. Botaram-nos todos numa sala com um
coronel, eu acho, ele não se identificou, e perguntava com raiva:
- Cadê
Sófocles? Eu exijo que digam, se não sobra pra vocês!
Nós estávamos
perplexos de tanto medo, ninguém se ousava a dizer, nem mesmo o Abu. Até
que um colega nosso, Antenor Camargo, teve uma gota de coragem e
disse-o:
- Senhor, ele está morto!- Morto? – ele riu diabolicamente.
- Sim, senhor, morto! – replicou Antenor.
-
Você acha que aqui é o que? Que eu sou ignorante? Que eu não sei que
ele é um desses escritores da juba comunista?
- Mas está morto, acredite
em nós! – suplicou Camargo
- Acredite em vocês?! Todos estão presos,
prendam-no!
Passamos a noite lá. Passei a noite horrorizado, com
muito medo do que nos poderiam acontecer no dia seguinte, não dormir, só
pensava em tortura, pensei que eles fossem torturar-me. No dia
seguinte os espectadores, mais uma legião de pessoas, estavam lá para
nos soltar, entregaram uma edição do livro subversivo em questão, com a
biografia do autor. Os militares viram que não tinham como prendê-lo,
pois, ele já estava preso só que em outro aspecto e era impossível tirá-lo de
lá. Quando nos tiraram da prisão, eu não acreditei no que um soldado
nos disse, não falei nada, mas pensei que fosse gozação dele para conosco, e
pensei repentinamente, “Eles vão me matar”, “Eles vão me matar”. Só
acreditei quando vi meu pai e minha mãe, me agarrei a eles e desabei a
chorar, nunca havia chorado daquela maneira, nem sei explicá-la. E o
choro vinha atrelado a uma dor, a dor da injustiça. A peça foi proibida
por uma subversão identificável.
Foi há 55 anos. Hoje, vendo que há
pessoas que querem que esse momento grotesco volte, e falam como esse
tempo fosse feliz, o mundo fosse respeitador, e houvesse uma segurança
reinante. Lembro-me de Cristo e rezo: “Perdoai-lhes, ó pai, eles não
sabem o que dizem”
Roberto Filho